SÃO BERNARDO DO CAMPO 1

O post carece de curta explicação. Passei a parte mais significativa de minha vida na Vila Paulicéia, em São Bernardo do Campo, ABC paulista, um dos bairros onde Lula viveu e se forjou. Vivi ali dos 8 aos 19 anos. De fevereiro de 1968 a dezembro de 1978 sem saber que era vizinho do futuro presidente da República. Foram quase 11 anos que marcaram o resto da minha existência e , para o bem e para o mal, me transformaram no que sou hoje. Esse período me fez ver passar a história pela janela do sobrado modesto que morávamos na rua Pedro de Toledo. E ali acompanhei muitas crises de desemprego de meu falecido pai que enquanto "gramava" em busca de trabalho não podia presenciar ocasionais discursos de Luis Inácio Lula da Silva, o então líder sindical , feitos sobre caixas de laranja e carrocerias de caminhões defronte à entrada da Mercedes Benz que ficava a duas quadras de minha casa. A história passou pela minha janela e posso lhes garantir que eu jamais imaginava que aquela Lula que por ali discursava seria o mesmo homem que hoje governa o nosso país. A história abaixo que será contada em pequenos capítulos a quem tiver paciência de ler é resultado direto das sensações que me evocam aquele passado metalúrgico já distante.
SÃO BERNARDO DO CAMPO ou Anotações de um peão instruído

Que memória curta presidente ! A gente desceu do ônibus agora e o senhor finge que nem conhece a gente ! Esse ônibus passa pelo Taboão , por Piraporinha , pelo Baeta Neves e até pela Vila Paulicéia. E posso quase que lhe garantir que passa também por Jordanópolis e pela Vila do Tanque onde o senhor tinha meia dúzia de amigos peões dos tempos em que todos- o senhor inclusive- furavam pneus dos caminhões novos como instrumento de pressão aos patrões.
Bons tempos aqueles né presidente quando o torno não lhe tomou um dedo da mão e onde o senhor ouvia na manha do aprendizado aquela porção de canções de protesto e um manifesto comunista que aliás ninguém entendia muito menos o senhor. Como era grande aquele tempo presidente . Grande e largo aquele tempo. Tão largo e tão grande quanto o município de São Bernardo do Campo que termina ali no meio da serra , quase colado em Cubatão onde num tempo de sindicatos ferventes as crianças nasciam sem cérebro e os militares diziam que a falta de cérebro era castigo de Deus porque os pais das crianças eram comunistas, subversivos, agitadores.
Olha presidente que memória mais curta a sua porque agora quando ainda baixa a neblina nas beiras da Billings o senhor esquece que comeu tilápias fritas com as mãos enchendo os dedos de gordura e farinha de trigo barata e cuspindo as espinhas nos seixos do chão. O santo São Bernardo que era e sempre foi padroeiro da cidade que o acolheu dizia que “o amor basta a si mesmo. Quando penetra no coração , absorve todos os outros sentimentos. A alma que ama, ama e não conhece mais nada “. E o senhor ama a cidade que o acolheu ? Ama o cobertor que Deus e São Bernardo lhe deram ? Ama o Rudge Ramos, o Riacho Grande , a Vila Assunção, o Bairro Demarchi em cuja principal avenida muitas vezes o senhor se refestelou de polenta e provou daquela cachacinha com cambuci que ficava em enormes potes de vidro ?
Se no seu coração só coubesse amor não haveria espaço para tantos sentimentos discrepantes, discordantes, alarmantes, paralisantes. O seu amor pela cidade veio antes do seu poder . Ou não veio ? ou não era amor ? ou foi só uma terra que lhe acolheu depois que a seca lhe expeliu de Pernambuco ?
Sua memória luta mesmo contra o esquecimento ? de que material se pavimentou a estrada que lhe trouxe de Pernambuco até aqui ? Quem lhe fez afinal ser o líder das massas, dos tomates, dos laranjas, dos seringueiros, dos proxenetas e astronautas de uma lua só ? Quem lhe deu essa voz rouca e essa opaca persistência dos dias de hoje ? Foi o calango , a caveira do boi morto na seca, foi o parangolé ?
Que memória curta presidente. Eu desci do ônibus e quebrei o pé . Fiquei tanto tempo na caixa que nem deu tempo de ver o senhor governar. Mas fui um daqueles que lhe aplaudiu e lhe acenou em Vila Euclides , fui um daqueles que deixou a marmita em casa nos dias de greve e fui um daqueles que ficou com os olhos cheios de ardume quando as bombas de gás explodiram ao redor da igreja matriz de São Bernardo do Campo com toda aquela correria e gente sangrando na rua Marechal Deodoro onde ali , numa travessa, meu filho cabeçudo tirou a carteira de identidade no dia 5 de julho de 1973 quando nem eu sabia que o Brasil vivia uma dita que era dura e os homens ganiam como cães por não se calarem como ovelhas.
(continua amanhã)

Comentários

Dentro da Bota disse…
Passando para ler....

Gioconda, Roma
Anônimo disse…
Pois eu virei aqui pra ler TODOS os capítulos. Na esperança (essa teima em morrer) que o final dessa nossa história não seja assim tão cruel.

Beijos
Anônimo disse…
o atual governo tem muitos erros, discrepâncias e absurdos, mas queiram ou não, vai passar para a história como o melhor que o brasil já teve; ou no mínimo, como o menos ruim. os números não mentem - 'contra a luz do sol, não há argumentos: cega os olhos'.
Unknown disse…
De uma pertinência mordaz.
Lamento que aí tal como aqui, as memórias se dissipem entre as cortinas da hipocrisia e a sumptuosidade banal dos discursos sobre o Orçamento de Estado...

Um beijo
Lu Carvalho disse…
Não consegui esperar, tive que passar por aqui pra ler e amanhã volto pra ler o 2ºCapítulo.
Bjs

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