ARTESANATO CAMINHONEIRO

Sou um tosco artesanato criado por meu pai e parido por minha mãe, moldado ao sabor de ventos químicos que chegavam das fábricas da Mooca e da Lapa paulista. Fui feito aspirando brisas insalubres que chegavam desde o Tamanduateí e perdi muitas vezes meu coração às margens do Tietê bem antes da confluência com o rio Pinheiros.
No parque dom Pedro II subi em ônibus trôpegos que me levavam em longas viagens até o ABC e o cheiro de enxofre e excrementos azeitosos me passaram sob as narinas ali na Vila Prudente, antes do crematório da Vila Alpina onde vi ser velado o corpo de Raul Seixas.
Sou um tosco artesanato sem freio de mão que dobrou curvas perigosas na via Anchieta regulando os segundos pelo relógio da fundição Windsor. Meu destino caminhoneiro me levou a rudes comilanças e a estradas perdidas onde furei muitos pneus. Me escaldei em aclives e declives e dormi nos pátios e acostamentos enquanto esperava a neblina baixar.
Sou um tosco artesanato que jaz abandonado num quiosque de uma estrada vicinal. Por ser tosco, rude, quase alquebrado , ninguém me compra , ninguém me quer, enquanto nas horas de folga defendo meus trocos. Não sou moeda pra trocas, faço troças e não sou grife. Grafe direito meu nome pois ele é de fácil pronuncia mas prenuncia difíceis escaladas. Sou íngreme, torpe, sarcástico e leal. Amanhã acordo cedo , tomo um café forte, bato os pneus e sigo adiante sem pagar nenhum pedágio.


Ricardo Soares, 2 de maio de 2008

Comentários

Artsy-Fartsy disse…
Gostei muito, principalmente das hipálages e enálages. Exemplo de texto bem escrito e profundo.
Anônimo disse…
Ricardo

Admiro bastante a sua forma de escrever!
Parabéns!
Patty Diphusa disse…
Belíssimo...Adoro o jeito que você brinca com as palavras, falando sério. Parabéns.
E tenho a impressão de que o texto foi escrito por um doce artesanato.

Beijos, se cuida.
Anônimo disse…
E Deus criou Drummond e Soares... (rs)

Senti agora a doce poesia de Drummond visitando suas palavras.

Parabéns!!!

ps.: Eu volto para falar dos índios e do vinho, as energias do dia já se foram.

Beijos
Anônimo disse…
A-MEI(apesar de não saber o que são hipálages e enálages).
Em suma: EU COMPRO! EU COMPRO!
Marrie disse…
Quer dizer q vc tbém sabe ser "romântico" ao escrever?! rs
Adorei esse texto.... talvez pela sua profundidade e sutil desabafo!
Bravo!
com você as palavras ganham forma e vão desejando imagens...imaginei vc feito de barro, barro bom, com liga, moldado por mãos fortes, caboclas...
acho extraordinário dinheiro nenhum te comprar...
Adorei!
Talvez por eu ser uma tosca também.
Anônimo disse…
Alguns artesanatos ficam melhor enfeitando os caminhos...

Mas amanhã é segunda (literalmente), bom tomar café forte e quente, cachecol e guarda chuva. É outono na cidade da garoa. E os termômetros marcam 15 graus.

Bjs!

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