última nos 51 (excerto)

     Todo ano,há muitos anos, desde o final da adolescência, eu escrevo um derradeiro texto com a idade em que me encontro momentos antes de fazer aniversário. Um besteirol próprio,pueril, mas que de certa forma me faz ter pistas sobre mim mesmo e de todo o entorno. Uma derivação não muito original dos clássicos "diários de bordo" dos adolescentes planetários de todas as eras ou das memórias de escritores que , desde sempre, tiveram coisas muito mais importantes do que eu a dizer. Para não perder o costume me dei ao costume nas últimas horas do último dia 7, momentos antes de adentrar a madruga onde completei 52 anos. Parte do que escrevi vai aí pra vocês... espero que náo esteja tão intragável. 
(...) Estou grogue. Ando grogue de mim mesmo,cambaleando,buscando rastros que devo ter deixado por aí , buscando pistas de mim mesmo nesse homem que eu sou. Reinventando, não sei se melhorando, mas reinventando. Magoado internamente por tanto ter magoado. Magoado por não se achar reconhecido.Magoado porque me tiram os horizontes e as paisagens mas mesmo assim  ainda um pouco crédulo  achando ser possível  um admirável mundo novo no meio de tanta confusão, turbilhões existenciais, desencontros, poses virtuais, espaços vitais, abandonadas expectativas deixadas ao relento.
       Lá vem mais clichê : não é fácil envelhecer, sobretudo quando a alma calçou de vez os arroubos da juventude e você não se vê nunca na condição de bombeiro mas de extemporâneo incendiário num mundo pacificado (ou acovardado ?) onde o melhor é ir a favor da marola e não deixar claro o que se pensa. Me parece que na minha profissão nunca se controlou tanto a opinião alheia.Quem lhe emprega quer empregar também os seus pensamentos ,padronizar e pregar os seus "achismos" na cruz comum da mediocridade que é o trinômio  "casa, dinheiro, carreira" com espaço na garagem para o carro do ano. Como é desumano o mundo globalizado. A noção do pecado sucumbe passando pelo triste filtro do senso comum. Sou um homem comum que fala como um desesperado pois talvez ainda busque as palavras para definir minha indignação diante dos desmazelos a que o mundo moderno nos obriga. Todos, ou a maioria, temem o imprevisto, o frio na barriga, toda e qualquer situação fora do mínimo controle. Somos uma porção de bolhas dentro de um shopping center cósmico que é esse planeta que finge aceitar as diferenças para apenas explicitá-las mais. Cansei amigos. Cansei das vaidades literárias,das vaidades intelectuais, dos fashion weeks existenciais ou da roda da fortuna do momento. Cansei das obviedades, das ideologias, dos valores das classes médias, das praças de alimentação e dos engarrafamentos obtusos. Cansei do tempo que não vivi entre os automóveis, cansei de repetir os mesmos padrões, cansei inclusive de olhar meus cães com mais ternura do que a muitos seres humanos irremediavelmente irracionais. Cansei das autoridades policiais, das personalidades do mundo corporativo e publicitário, cansei de ver o padrão otário ditar as regras, cansei dos verbos "malhar", "badalar", cansei de ouvir "balada" , "Sampa " e sustentabilidade , cansei de minha própria obviedade.  
       Acabei de colocar uma camisa xadrez de flanela para espantar meu frio.Me sinto o próprio lenhador canadense escrevendo à luz de velas  nessa noite onde completo 52 anos. A energia elétrica falta mas eu estou aceso. Choveu mas não me molho. Meu lábio racha mas não sangra. Agora estou só mas em breve acompanhado.Tenho manchas no passado mas o futuro conspira novos acertos. Meus dentes continuam tortos mas estão limpos e firmes embora alguns eu tenha perdido. Perder a gente sempre perde, até quando acha que ganha. A lição de cretiníssima auto-ajuda que lhes digo é esta. E também que não há nada  que você peça que o destino não se esforce para lhe dar. O que está é na sua mão. E o coração às vezes tem que estar na cabeça.Se a gente quer, enfim, que algo ainda aconteça. 

Comentários

Arilo disse…
Parabéns! E que venha outros tantos anos...
Carambolas amestradas! Que essa canseira toda seja mola prá '...ter o pasmo essencial que tem uma criança se , ao nascer, reparasse que nascera deveras...'
Que nessa nova rodada em torno do sol vc nos permita continuar lendo em suas palavras o que sentimos e não sabemos que pensamos...
Abraços!
K. disse…
Tão atrasada, como sempre. Mas, nunca sem deixar de deixar de expressar meu carinho e minha amizade por você - menino Peter Pan.

A gente se perde das pessoas, e, olha só, se perde até da gente, mas, não de quem gostamos. (ainda que com atrasos!). Pra mim, você é especial, assim mesmo: crítico e cítrico.

um beijo grande, em mais um ano. Comemore, nesse friozão, com muito caldo de feijão feito na hora, e com as pessoas que você ama. É isso o que importa.

:)

Postagens mais visitadas