sejamos porcas, jamais parafusos



A certa altura, em anos de muito chumbo, havia manifestações contrárias ao regime
em dez das doze avenidas  mais importantes do país
e o clamor  por entre as nuvens de fumaça
dava a entender que era muita gente

muita gente venceu o cartão sem ter o crédito,
muita gente cansou de passar sede dentro dos ônibus
e muita gente ficou a deriva diante das imprecisões do tempo

Hoje não há galhardia  nem charme
diante de poesia de protesto,
obtuso objeto em desuso
diante das avarandadas conclusões do mundo virtual
que se debruça em múltiplas direções
todas sem rumo, sem eira
mas todas repletas de certezas

O certo é que hoje todo mundo está certo
e a linguagem se reinventa
da frase ao enunciado um único lado
urge deixar pra trás o passado e mergulhar no vácuo
da overdose populacional
da superlativa e inócua densidade demográfica
sujeitas a gráficos e institutos de pesquisa

Não, não,não esculachai o rito do poema
pois a poesia é o território dos bardos chatos
carrapatos de outros tempos sombrios
melancólicos profetas de sentimentos tardios
criaturas de mau hálito  a recitar apocalipses

Eu sou do livro dos eunucos
párias pagos para reprimir tesões
tosar a criação
pois a criação é perigosa
confronta ex- ativos que ficaram passivos
confronta futuros que ficaram mal passados

Criação, torneiras fechadas
criação pasteurizada
criação com grife , pedigree
cartão de visita
criação profissionalizada
com patente e registro em cartório
pois é preciso passar toda palavra para um só nome
preciso proclamar a unanimidade
o poeta colunável
a coluna removível
o cobiçado adereço do "estar nas moda"
ser da moda é foda...

Brancos, negros, mamelucos e cafusos
sintetizem-se na música eletrônica
orbitem na nau dos confusos
sejam porcas, jamais parafusos...

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