"MIXIRICAS" E CUNHAS

      

   Mixirica era aquele neguinho bom, personagem que poderia ter saído de uma crônica de Fernando Sabino ou de um pensamento de Rubem Braga. Podia também ser produto de um devaneio poético de Paulo Mendes Campos ou um protagonista juvenil da prosa de Marcos Rey.
   Só sei que Mixirica bandeava ali pelos lados da estação Butantã do metrô paulistano e era um neguinho belo  de 12 anos com um sorriso que iluminava a feira de terça ali no pedaço quando limpava com o antebraço o bigode de caldo de cana que lhe ficava sobre o grosso lábio superior. Ninguém sabia de onde ele vinha e nem para onde ele ia. Só se sabia que o Mixirica era popular. Pedia e pedia muito. Cafezinho, panetone,pãozinho quente,paçoquinha, pasta de dente, tênis velhos, cadarços coloridos, chicletes e figurinhas.  Pedia leite com Nescau, pedaço de pizza, frango assado, amendoim e pipoca, camiseta com estampa colorida, bicicleta usada, banana, laranja e , lógico, mixirica.
     Em troca disso tudo o Mixirica oferecia cortesia, gentileza e meia dúzia de servicinhos miúdos e marotos dos quais o seu corpinho mirrado podia dar conta. Dar uma olhada no carro, fazer um rápido serviço no banco, buscar remédio na farmácia, pagar uma continha atrasada lá na lotérica, pegar uma quentinha na padaria, levar sapatos para o sapateiro, buscar peças pequenas na lavanderia,  pois, por ser miúdo,  não dava conta de levar grandes lençóis, cortinas ou edredons. Mixirica era, no bom sentido, o rei do leva e trás. O menino da gentileza que gerava gentileza.
   Muitos o Mixirica agradava e poucos não eram cativos de sua simpatia. Um deles, um tal de Cunha, sujeito de maus bofes, que todos sabiam ser dado a dar pancada em mulher e colecionar armas. Cunha é dono de uma loja de ferragens e gosta de resolver as coisas no grito e no muque. Adora aquelas lutas de MMA , boçalidade transmitida pela Tv.
    Mas, pior de tudo talvez,  Cunha é racista. Daquele tipo que ainda chama meninos como o Mixirica de “neguinho folgado” ou “neguinho fedido”. Cunha e seu “siso” era o mal. Mixirica e seu sorriso era o bem. Sim criaturas .Pode o mundo ser maniqueísta e por mais que a gente se oponha a isso muitas vezes ele é. 
      Um dia, de ovo virado, sem mais nem menos, o Mixirica deu uma resposta atravessada para o Cunha. O truculento nem se deu ao trabalho de ameaçar o moleque. Quase em seguida da treta  foi ao fundo de sua loja , pegou um revólver e foi atrás do Mixirica que comia, com talheres de plástico, o recheio de uma quentinha que era arroz-feijão, couve, torresmo e ovo. Deu dois tiros no menino  que morreu com a boca cheia olhando para o céu do Butantã e para a cara rancorosa do seu algoz.
  Cunha sumiu por uns dias, mas depois, passado o flagrante, voltou para a loja que continuou funcionando em sua ausência tocada por empregados. Não se deu ao trabalho de explicar nada  e nem perdeu muita freguesia visto que a maioria dos seus clientes era eventual, gente de passagem pela movimentada avenida Vital Brasil. Cunha continua colecionando armas, batendo em mulher e seus braços estão cada vez mais grossos e largos. Para quem não gosta, ele lança aquele olhar de “vai encarar?”. A justiça ele não encara e sequer há data para o julgamento pela morte do Mixirica.
Enquanto isso, o Zé Geraldo, que é vizinho da loja do Cunha,  se esforça todos os dias para explicar ao neto Samú, de 13 anos, o que é justiça aqui nesse país, que mata os Mixiricas e leva todo tipo de Cunha ao topo para poder fazer o que quer e o que pode para piorar o Brasil.

texto publicado originalmente no portal DOM TOTAL . (Clique aqui)

*Ricardo Soares é escritor, diretor de TV, roteirista e jornalista. Foi cronista dos jornais “Diário do Grande ABC”, “Jornal da Tarde”, “O Estado de S.Paulo” e da revista Rolling Stone.

Comentários

Carlos Dumont disse…
Obrigado Ricardo, esse texto conseguiu me devolver a sanidade, pois já estava "louco" com vontade de explodir, implodir na verdade, já que nada posso fazer. Os Cunhas existem e seguem nas suas maldades diárias seguidos por "inocentes". Tão inocentes quanto a população alemã que apoiou o sr. Hitler Cunha
Ricardo Soares disse…
Carlos...Tomara que o país acorde e tire democraticamente esse meliante da cadeira onde está sentado fazendo tanto absurdo...obrigado por sua leitura

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