VISCERAL MÚSICA


      O que sou ? o tango argentino, “morocho” e molhado , a adernar nas ruas de Buenos Aires ?  Sou milonga de praças  antigas, um cheiro de porto , ferro velho, ventos do sul, respirações ofegantes ? Sou bandoneon que evoca recordação, luas ancestrais, fronteira com o Brasil, carne, mate e pampa ?
        O que sou ? música antiga a começar da cantiga? por que me deixo escorrer e sou o fundo de tanta história esgarçada, amores brutos, beijos longos, rompimentos, começos, fins ? Saio de muitos retratos amarelados,emoldurados em fundas gavetas.  A maioria das fotos  importantes de nossas vidas vem acompanhada de uma música embutida.
        Poderia ser uma morna quente, descalça, vinda de Cabo Verde, ou um samba de roda, ou um frevo que rodopia, um choro que derrete os Arcos da Lapa , um bolerão cantado por Nelson Gonçalves, um blues sentido de Memphis Slim, uma balada romântica, uma nota quântica a romper novos espaços.
        Não me pauto pelas pautas. Inverto os compassos, estoco as harmonias, sou bemol, sou sustenido , um suspiro comprido na tarde que conduz o arrepio. Vivo para te fazer sentir frio, te lambuzar de calor, escapo por tantas frestas, sou entregue por baixo de portas, vou ao baixio de tantas bestas que faço dançar quem me bebe, faço voar quem se joga, provoco indigestão só em quem não me come.

        Me ouça depressa ou lentamente . Só não escaparás impunemente porque para me sentir é preciso sangue, suor e vísceras. Se não tiver nada disso não é música . É só um arremedo de som. Fora do tom. Nada bom.

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