MILONGAS DE AMOR

             
pintura de Rosângela Vig
    Hace calor e este tango é para vós. Por Dios que no me vengas com corretivos gramaticais porque agora invento aqui meu próprio idioma para me manifestar. Acordes loucos de bandoneons desabotinados , suores dentro dos coletivos de Buenos Aires . Aires que não respiro minha Santa Maria .
    Fiquei surdo com tanto barulho , com tantos ruídos entre os tráfegos enlouquecidos daqui, de São Paulo, da capital de Angola. Meu piano está desafinado, enxerguei músicos cubanos descendo as ladeiras do Pelô e a Bahia se fia nessa prosa meio argentina, meio cretina, meio sem eira nem beira.
   Hay milongas de amor. Dali de onde tiro meu despudor, minha sensação náutica de que estou a deriva. Preciso tanto de flores nos vasos, creme no rosto, paixões fugidias, poesias bandidas, cachoeiras que despencam numa profusão de samambaias.
   Um gato cruza a sala, outro se descola da parede onde o Edgar Allan Poe o cimentou num pesadelo antigo. Um terceiro gato, safo e de olhos bicolores, pensa em pular do décimo andar mas o sofá é mais aconchegante. Santa Maria madre de Dios rogai por nosotros nos veranicos de Punta Del Este e no deserto de sal da Bolívia. Há um gosto ácido na boca da América Latina.
   Estátua de barro,pepita de ouro,aguardente,escarro ...cuspo pela janela em plena Transamazônica e ainda ouço que esse tango é para vós muito embora o clima aqui não combine com aqueles seus vorazes jogos de pernas que me enlaçam enquanto choro com o drama de Gardel entre as veias.
   Minhas veias seguem abertas, descobertas. Sou aquele condor que passou, a maritaca que pousou, o doce sabiá do era doce e se acabou. Adoro escrever ao som dos tambores, ouvir um som que vem de longe. No meio do vozerio enfumaçado bebo rum , tomo conhaque barato, deixo a empanada no prato. O que tenho aqui para falar do tango , do mambo, do deus Molambo ?
   As caldeiras do navio remoto fervem e baixamos os vestidos do passado. Esse tango é para vós. É para todos nós. Milongas de amor. Hace calor e não refresco. Vejo um planador passar sob os céus de Roraima. Do outro lado é a Venezuela. Atravesso a fronteira de mim mesmo. 

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