O FIM DO FRANGO COM POLENTA

   


   Republico aqui com outro título a crônica de segunda-feira no DOM TOTAL (LEIA AQUI)  também por um curioso motivo de "diferença cultural". A crônica lá publicada com o título de " A memória da polenta que azeda minha baguete" foi ilustrada com uma saborosa foto de um frango ensopado na polenta mole. Tudo o que o tradicional "frango com polenta" de São Bernardo do Campo não é. Esse , ao qual me refiro, na minha memória e na de milhares, é a fabulosa e calórica polenta frita que acompanha o frango também frito tal qual a foto acima. A diferença de percepção deve ser porque em Minas polenta é assim , mole. O que entre os paulistas se chama "angu". Nada sutis diferenças.

A MEMÓRIA DA POLENTA QUE AZEDA MINHA BAGUETE


Por Ricardo Soares*



   Dizer que o Brasil é um país sem memória é de um óbvio que urra, saltita, balança a pança. É de um “óbvio ululante” como dizia o gênio pernambucano – carioca Nelson Rodrigues. Isso posto, ainda acrescento que falava do assunto aqui em Paris com amigos brasileiros quando trombo com a noticia que dá conta de mais um golpe na memória. Fechou o restaurante São Judas Tadeu no Bairro Demarchi, São Bernardo do Campo, estrela da tal rota do frango com polenta, batizado por meu amigo Sérgio Pinto de Almeida  como o “Maracanã da polenta” visto as proporções estratosféricas de suas instalações que abrigava mais gente que a torcida do simpático Juventus da Moóca.
   Reza a lenda que o restaurante nasceu para atender a uma alcateia de caçadores famintos que flanavam naquele pedaço bucólico de São Bernardo em 1949 . Os frangos que eram então servidos aos lobos famélicos eram criados no quintal e temperados com ervas múltiplas e servidos sobre uma polenta mole. O local tornou-se lendário e serviu de cenário para muitos almoços familiares de milhares em mais de seis décadas. Mais lendário ainda se tornou quando serviu de cenário a muitas reuniões dos que frequentavam o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo nos finais dos anos 70 tendo a frente o futuro Lula presidente. O São Judas foi assim vital para as bases de fundação do PT. O resto é história com suas glórias, invenções e decepções.
  Na minha memória afetiva, o fim do “São Judas” dinamita grandes e singelas lembranças de infância. Era o lugar que meu pai nos levava (eu, as manas e minha mãe) quando sobrava algum no orçamento. Lugar que levei os meus filhos, lugar onde toda a decoração ao mesmo tempo despojada e brega poderia ser uma locação de um filme da Cinecittá romana.
   Não vou esquecer jamais o frango crocante chegando no prato sempre acompanhado de toneladas de polenta frita e calórica que só de lembrar faz minha diabetes galopar em açúcares abertos. Não vou esquecer o inesquecível barulhinho que se ouvia quando essa polenta era mordida e, ainda quente, queimava nosso paladar. Não vou esquecer das sobremesas, do corre-corre da criançada, de tanta foto que ali foi tirada por famílias hoje findas. Toda vez que eu queria ter ainda hoje uma referência visual da minha infância eu voltava ao “São Judas”.
   Em um país como a França, um patrimônio cultural e gastronômico como esse seria tombado. No Brasil provavelmente vai virar um enorme empreendimento imobiliário de mau gosto, pois tem 16 mil metros quadrados ( dá dois campos do Morumbi) e pode oferecer um cardápio de construções de apartamentos daqueles que tem “varanda gourmet” pra queimar carne diante de um cenário horroroso no qual se transformou o antes bucólico Bairro Demarchi em São Bernardo.
   Ainda resta o consolo de que ainda resistam o “Florestal” ( como lembra a amiga Daniela Nanni) ou o “São Francisco”. Mas vai saber por quanto tempo. O tempo de desconstrução segue firme , aqui e agora, em todo o Brasil e sobremaneira , sempre, em São Paulo. Essa desmemória do fim da polenta da minha infância azedou a minha baguete de hoje na capital francesa.
*Ricardo Soares é escritor, diretor de TV, roteirista e jornalista. Autor de sete livros, morou em São Bernardo do Campo de fevereiro de 1968 a dezembro de 1978.


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