No fundo do meu copo de conhaque


( à memória do meu amigo poeta Julio Saraiva no terceiro ano de sua tocata e fuga)


No fundo do meu copo de conhaque,
Xeque mate, esquinas sujas, unhas roídas
Tristes caipirinhas mal batidas, sensações atrevidas
Aviões que se degelam ao sal, meu mingau de aventureiro

No fundo do meu copo de conhaque,
Amor de araque, arenque e arraia
Alto falantes a brandas tonteiras,
Mais uma tosse que desprega das ribanceiras

No fundo do  meu copo de conhaque,
Refugiados sírios assopram fogueiras
Indianos assam castanhas
Os medos se desprendem das entranhas

A neve se misturou a chuva, a água turva voltou para o Sena
Corcundas sorriem nos semáforos
Narigudos peidam alcachofras nas estações do metro
Olheiras despontam todos os domingos
Meus pingos nos is estão caiando paredes

No fundo do meu copo de conhaque
Uma mosca sobrevive de esmolas
Deus aparece nas oferendas
E as flores de maio vicejam em abril

No fundo do meu copo de conhaque
Pago o preço e não dou troco
Olho pra trás e não me reflito
Acendo um incenso, coração contrito
Sou todo uma poesia francesa
Um remoto romance russo
Uma estação no inferno feita por Dante
Uma nova bossa que segue adiante

No fundo do meu copo de conhaque
Não sigo sendo poeta
Gritaria, palmas , claque
A saudar minha própria debacle...

Paris, 2 de março de 2016


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