VIAJAR É DESAPARECER NO URUGUAI

foto de própria lavra
    Replico aqui crônica da última segunda-feira no DOM TOTAL (veja aqui). A reflexão se dá por conta não só de lugares plácidos desse mundo mas  de como são aborrecidos os tais tradicionais relatos de viagens que existem por aí...


                                          
VIAJAR É DESAPARECER NO URUGUAI


     Fechamos os olhos e nos vemos. A cruzar novas fronteiras, buscar novos caminhos. Cada viagem é, na verdade, uma busca de si próprio, ainda mais quando as bússolas envergam e o GPS não tem a menor serventia. Às vezes, quase sempre, traçamos planos de voo que não podem ser cumpridos e as pistas de pouso que durante muito tempo pareceram seguras estão completamente esburacadas. Assim sendo, nem é preciso dizer que "viagem" não tem nada a ver com turismo. Muito menos com o tal "turismo camisinha" onde o "viajante" se protege de todo o universo a sua volta como se fosse contagioso.
   Minha curta e proveitosa atual viagem durou 19 dias e percorreu exatos 5.697 quilômetros a bordo de um Troller vermelho, uma média diária de 300 quilômetros rumo ao sul. Fui de São Paulo ao Rio Grande do Sul, entrando no Uruguai via Santana do Livramento-Rivera, cortando o país de Mujica e depois voltando pela fronteira do Chuí um arroio maltratado numa cidade de fronteira muito feia.
   Mas aqui não falarei das raras feiuras desse caminho idílico percorrido junto com a Tania Celidonio, minha fraterna amiga há quase 40 anos. Fomos em busca de novos descansos para nossas retinas, corações e mentes, cada qual por certo com seus motivos, mas com sensações em comum. Visitamos um casal de amigos (Saulo e Bia) em Cruz Alta (RS), terra de Érico Veríssimo, e, em Punta Gorda (Nueva Palmira, Uruguai), um amigo dela (Tomás), tradutor em tempo integral que se tornou, de imediato, meu camarada também. 
   Poderia repetir aqui que o surradíssimo clichê de que a vida é a arte do encontro, mas não o farei. Porque os encontros são mais do que arte. São a própria síntese do sentido da vida e suas invenções de surpresas que se embutem superlativamente nas viagens. Se você deixar a "viagem" fluir em você. Se você deixar todas as suas convicções e costumes em casa e se deixar levar pela onda de conhecer o que é novo e não levar velhos hábitos dentro das malas.
     O escritor e veterano viajante Paul Theroux diz que "viajar é um ato de desaparecimento", o que é uma verdade se evidentemente você se deixar desaparecer, o que é bem difícil nesse nosso mundo virtual e plugado. Viajar é assim, hoje em dia, um exercício e tanto que nada tem a ver com turismo, repito. Aliás, os livros de turismo são aborrecidos pois descrevem preços, tarifas, dicas, ofertas e até informações, mas desconhecem as sensações e sentidos que são o epicentro de qualquer viagem. Assim, um livro de viagem tende a ser uma coisa chata, escrita por outro chato, direcionado a leitores chatos e regrados e esse meu raciocínio é também diretamente inspirado numa pensata do Theroux, um escritor de "viagens sensações" como Ryszard Kapuscinski.
   Viajar para ver as mesmas coisas só não é mais aborrecido quando você vê essas mesmas coisas pelos olhos dos outros. Porque você pode ter evidentemente sua própria visão da torre Eiffel, que independe da visão alheia. Viagem tem a ver, literalmente, com movimento, experimentação e doses de risco. Aí sim tem graça contar o que foi visto. No mais, se não for para isso, é melhor ver Discovery Channel, já que a televisão tirou muito o prazer de visitar pontos turísticos. Eu, por exemplo, jamais pus os meus pés na Times Square em Nova York, mas parece que já a visitei mil vezes. Sacaram a lógica da coisa?
   Para mim, "viajante" que não suja as unhas no destino visitado deveria era ficar em casa. Não sei se nessa curta viagem ao Uruguai eu consegui fazer isso, mas tentei. Para chegar à conclusão de que o país que já conhecia um pouco de visitas anteriores (1997 e 2014) continua tudo de bom, mas torço para que continue preservado da deseducação dos turistas brasileiros e alguns argentinos. Queria o Uruguai pra mim, mas prefiro que continue deles, pois acho que nem eu nem os brasileiros merecemos. Não sei se o país ficou ainda melhor por conta de Pepe Mujica e Tabaré Vasquez, mas se converteu num país muito melhor que o nosso para se viver. Uma das sensações mais caras é por lá passar com a saudável sensação de poder dormir de porta aberta e deixar o carro na rua sem ter medo de que o levem em 15 minutos. O Uruguai, do tamanho do nosso Paraná, só tem a nos ensinar. Pena que não queiramos aprender a começar da profusão de impecáveis escolas rurais espalhadas pelo país. Como lembra o camarada Tomás "O clima geral do Uruguai não é devido somente ao Mujica e ao Tabaré. Este foi o primeiro país católico das Américas a aprovar o divórcio, o primeiro das Américas (e um dos primeiros do mundo) a aprovar plenos direitos de voto para as mulheres, em 1917 (três anos antes dos EUA) e a saúde pública funciona tão bem que os planos de saúde não conseguem prosperar". Quanto à segurança, o mesmo Tomás lembra que quem realmente sofre com isso são, como sempre, os pobres, a periferia, a favela. A diferença é que lá não existem Datenas, como ele mesmo diz. Mas viver em Montevidéu tem lá seus pontos de insegurança, é bom lembrar.
     Tenho até medo de propagandear o Uruguai aqui para minha modesta, porém seleta audiência, porque o país, como já disse, é para quem o merece. Mas confesso que lá no fundo alimento a partir de agora o sonho de envelhecer num país como esse, onde a gentileza parece gerar a gentileza, especialmente nos períodos fora da temporada de verão. Eu queria de verdade desaparecer em um Uruguai sossegado, onde os pesadelos da deseducação e incivilidade cabocla ficassem bem longe. Mas temo que até o nosso pessimismo possa contagiar os uruguaios que operam uma lógica muito diversa da nossa. A lógica de um país pouco populoso, onde as pessoas não se amontoam umas sobre as outras tentando sempre sobrepor o seu espaço ao espaço do outro. Enfim, viajar e desaparecer num país civilizado como o Uruguai é mais que um sonho de consumo. É uma necessidade espiritual. Que os bons fluidos do Universo preservem as ótimas energias eólicas do Uruguai e que seus ventos soprem um pouco sobre nós.

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