O último pôr de sol de Jericoacoara

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    A triste e cretina tecnocracia vigente no país desde sempre, que anda de braços dados com o tal "desenvolvimentismo", não ergue, mas sempre destrói coisas belas com uma voracidade impressionante. Isso faz com que se reduzam os paraísos tropicais brasileiros, porque com a desculpa de que eles devem ser acessado por muitos, na verdade leia-se "destruído" por muitos.
Um dos exemplos mais notáveis disso é o ex-paraíso de Jericoacoara, Ceará, quase inacessível há trinta anos e que agora vai ter aeroporto aberto para despejar hordas de turistas predatórios em vôos charters. Estou generalizando? então esperem para ver. O que tem sido lamentado por muitos é festejado, obviamente, pelo senhor André Facó, secretário da Infraestrutura do Ceará. Não passa pela cabeça dessa gente preservar um paraíso como aquele de maneira sustentável. O "negócio" é encher, transbordar, faturar.
Conheci Jeri há sei lá quantos anos. Logo após uma das visitas cometi uma crônica para o jornal O Estado de S. Paulo,  há vinte anos, onde louvava, entre outras coisas, o famoso pôr de sol de Jericoacoara. Evidente que ele vai seguir, mas certamente contemplado por um tipo de turista mais interessado em barulho e balbúrdia do que contemplação. Por que nossa noção de progresso é tão atrasada? Como nada podemos fazer me resta então um saudosismo barato reproduzindo abaixo um trecho daquela antiga crônica:
"Estou no alto da duna mais alta daqui. Enxergo, de longe, na linha do horizonte, o que penso que já esqueci. É certo que vivo a  buscar, correndo contra o tempo. Pode crer que são piegas as grandes coisas da vida. Este pôr de sol aqui é inenarrável. E no imenso mar, que um dia foi português, os raios vermelhos do sol refletidos na água se constituem em uma visão tão bela que juro que jamais serei o mesmo. São piegas as boas coisas da vida.
Estou no alto da duna mais alta daqui e descarto os dias inúteis, rodo as horas para trás e tento ajeitar o meu caminho para encostar no de quem interessa. Subo na duna com um sentimento de paz e arrependimento. Amo a todos que estão lá embaixo embutido que estou de uma paz imensa. Amo os meninos que correm atrás de uma bola furada, amo o burrico que transporta cocos verdes, amo os namorados que passeiam de buggy e as estrelas que despontam. Amo o estresse que deixei para trás, as pechinchas de amor, o peixe grelhado que comi, o cobertor curto que não esconde os pés nas noites de frio.
Estou no alto da duna mais alta daqui e me lembro que em muitas situações da vida acabei saindo, a contragosto, pela porta de trás.  Deixei casas vazias de sentimentos, enchi ambientes tristes com falsas alegrias, funguei, reclamei, expus minhas dores de dentes a um coro de descontentes. Li muito buscando saída em outras biografias para a minha própria vida difusa. Fui muitas vezes um chá que ferveu com várias ervas. Bebi de muitas infusões e dei de beber aos outros destas mesmas poções. Daí, me desculpe a rima barata, vieram as confusões.
A duna é a mais alta daqui e eu não subestimo mais nenhuma fração. Fração de segundo, minuto. Agora é hora. De esfarrapar, costurar, cerzir. É hora de saber para onde ir porque, olhando do alto da duna, descubro que acabamos não indo a lugar nenhum. Às vezes, por medo do bolo, a gente deixa a fatia mais doce sobre a mesa. Aí vem o gato e come. Às vezes a gente adormece e alguém mais desperto leva o doce no bucho.
Do alto da duna vejo os barcos voltando, as velas se recolhendo e eu fico tecendo um lençol imenso onde está estampada minha auto- estima. Nunca auto - piedade. Os barcos voltam, sargaços estão nas redes misturados aos peixes miúdos quando crianças descobrem uma arraia graúda. Surpresa. A vida é piegas porque ao contrário de Deus, como disse o poeta uruguaio El Sabalero, os homens, na sua existência, tem muitos primeiros dias.
Do alto desta duna tenho mais um primeiro dia. Uma nova descoberta. Descubro que não adianta a gente querer para dar certo. A vida é feita de desvios, muitos grãos de areia que entram nos olhos. E quando coçamos forte demais choramos. E quando choramos nos envergonhamos de nossas fraquezas.
Nesta minha pobreza de homem comum encosto as costas na areia quente e olho para o céu. Não vejo o Cristo Redentor nem anjos que tocam trombetas. Esse céu, cearense e globalizado, só dá espaço a um Boeing de destino incerto. Minha vista se nubla pois não sei para onde ele vai mas suponho ter ele destino certo ao contrário de nossos caminhos. Nunca um Boeing foi tão lindo com o sol em cima.
Minha embarcação perdeu o lastro para ir muito longe. Preciso ancorar um tempo justo em algum porto e me reabastecer. Aqui eu não bebo, não fumo, respiro fundo e me despoluo. Do alto desta duna - a mais alta daqui - quero aprender a pensar devagar, quero reaprender tabuadas que esqueci, quero enxergar Peri correndo atrás de Ceci e sentir que vivo numa terra com palmeiras onde canta o sabiá. Este pôr de sol em Jericoacoara é minha modesta canção do exílio. Um consolo para quem sabe que vai voltar a enxergar o sol se pondo, torto e sem jeito, por trás de todos aqueles prédios da avenida Paulista".
Publicado originalmente no DOM TOTAL. (Clique aqui)

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